12.27.2008

ser único

P. Quando de longe o animal viu o brilho, não duvidou. Sem saber se homem ou frio, caminhou sem medo à procura do início. Diante do chão que se erguia, pensou o que não podia ser pensado e vinculou ao andar a dor. A cada passo, então, não poderia nunca mais esquecer: a dor ressoava. Mesmo com os músculos perfeitos, o sol reluzindo no pelo, a fome saciada, corpo em peso e equilíbrio no auge do tempo. A cada passo, a lembrança da dor. De ser e estar, de livre caminhar, de um dia partir e ter decidido, em busca da luz, sentir só e ser único. Sem nunca parar, o animal continua, como uma lua, até a linha do horizonte sumir.

Escrito num papel de carta japonês de usagi, em Hiroshima, em setembro.

lírios de natal


P. Lírios laranjas chegaram, trazidos por um pato de natal.

invisível

P. Existe, na diversidade do que desperta meu interesse, a direção afoita de tudo encontrar e a tudo satisfazer. Mais que uma ambição se tornando gorda e intolerante, é um desejo de se perder no pó da dispersão que impele os passos. Ser assim invisível no mundo, passar despercebida na dor, ser única na solidão que envergonha. Construir um palco silencioso onde o espetáculo belo e forte fecha a cortina sobre o medo de sentir. Não há que ser menos que o melhor, há que ser o que minha própria voz proclama. Hei de acreditar na minha ilusão alimentada pela platéia, que bate plumas de surdo, querendo bis dessa dança desajeitada que se curva de tristeza para agradecer o fim.

Escrito sobre o papel de carta japonês de usagis batendo motis, no segundo dia em Hiroshima.

a tela brilha em tokyo

C. Sala do cinema em Tokyo onde assisti Ponyo, do Miyazaki.

o filho


P. Pensando no que faz diferença, o que permite que a sobrevida seja mais forte. Por mais que ter um filho seja anseio e continuidade, ele é outro. Seu, mas do mundo outros passos. Leves, as distâncias se perpetuam. É preciso parar para pensar: inevitável. Como pode um fato destruir o sono?
Escrito num pequeno papel japonês de anotações .

12.22.2008

ponyo on the cliff by the sea

C. Quando estive em Tokyo em setembro, os cinemas estavam todos enfeitados com a Ponyo, a menina-peixinho de cinco anos que se apaixona por um menino descalço. A nova animação de Hayao Miyazaki tem uma música-tema que toooooooooooodos os programas de TV não paravam de tocar. Contavam que, depois de vários filmes dedicados a temas mais adultos ou de crianças mais jovens, Miyazaki disse que queria encerrar a carreira com um filme, novamente, para crianças bem pequenas, como foi o Tonari No Totoro (Meu Vizinho Totoro), com o bichão que virou logomarca do Studio Ghibli. Assistir o filme lá foi o máximo: sala grandona, poltronas enormes, trailers de romances japas, sessão vazia e tranquila. Mesmo com meu japonês limitado, gostei muito, muito, muito. A química das lendas antigas japonesas de novo aparecem tecendo a ligação entre a realidade, muitas vezes cruel, e os personagens surreais. Claro que chorei, um tanto por ser descendente, mas um tanto porque, sempre, o que o Miyazaki gosta de contar são histórias que fazem a gente lembrar do que não pode ser esquecido.

Comprei a bonequinha no aeroporto de Narita, feliz da vida. Em Tokyo tudo já tinha acabado.